Um arquiteto do comunismo

 


A obra de Oscar Niemeyer

 

Mauricio Puls

 

"O bom é mau, e o mau é bom" (Shakespeare)

Existe alguma relação entre a obra de Oscar Niemeyer e sua militância política? À primeira vista, nenhuma. O próprio artista sempre fez questão de ressaltar que, na sua opinião, não pode haver arquitetura social num país capitalista, o que lembra a tese de Trotsky sobre a impossibilidade de uma arte proletária (1). De fato, o arquiteto é obrigado a atender à demanda de sua clientela, formada basicamente pela classe dominante e por seu Estado: não lhe cabe resolver, no plano estético, as contradições reais. "Na mesa de desenho, nós, arquitetos, nada podemos fazer nesse sentido... a tarefa única é protestar contra a miséria e a opressão e juntos lutarmos por um mundo melhor e mais justo" (2). Seus críticos, porém, vêem não apenas uma separação entre sua práxis partidária e suas realizações, mas uma oposição radical entre ambas. Sua obra é objeto de várias acusações: arquitetura sem função social, formalismo vazio, mascaramento das contradições existentes. Segundo eles, arquitetura social seria aquela feita em benefício das classes populares (como o conjunto Pedregulho, de Affonso Reidy) ou a exposição plástica dos conflitos inerentes ao capitalismo (como o brutalismo de Vilanova Artigas). Mas será que existe mesmo um antagonismo entre sua experiência política e sua carreira artística? Niemeyer começou a projetar em 1936. Ele ingressou no PCB em 1945, quando o partido foi legalizado, mas já simpatizava com os comunistas pelo menos desde 1935 (3). Ora, seria muito estranha a ausência de qualquer correlação entre suas convicções políticas e estéticas, que nele convivem há mais de seis décadas. Que ele próprio não seja capaz de apontar uma conexão clara entre ambas, nada há a estranhar: a linguagem verbal é totalmente distinta da linguagem arquitetônica, e em geral o artista não consegue traduzir suas realizações materiais num discurso inteiramente diverso. Nem por isso devemos desprezar suas declarações, que por vezes esclarecem questões importantes, mas cujas implicações reais permanecem inconscientes para o autor.

1. Beleza ou funcionalidade

Inicialmente é preciso definir em que consiste a linguagem arquitetônica. Antes de ser uma obra de arte, uma construção possui uma utilidade material: ela supre uma necessidade determinada de seu usuário (morar, estudar, trabalhar). O objeto construído satisfaz uma carência do consumidor. A relação entre sujeito e objeto define o valor-de-uso material da construção _ a sua função. Mas, além desse valor-de-uso material, a construção pode comportar ainda uma utilidade ideal: o objeto pode despertar a atenção de um segundo consumidor, diferente do primeiro _ o contemplador. Para este, a obra arquitetônica não vale por suas qualidades funcionais, mas por suas propriedades estéticas: em vez de ser "boa para morar", ela é "boa para pensar". A construção é um objeto para a vida, mas a arquitetura é um objeto para a reflexão. A obra encerra uma contradição entre funcionalidade e beleza. A primeira é um valor-de-uso material para o usuário; a segunda é um valor-de-uso ideal para o contemplador. Cabe notar que as duas qualidades não se confundem, assim como os sujeitos que as usufruem: uma cidade cujas ruas são calçadas com pedras irregulares pode ser extremamente bela para os visitantes, mas um verdadeiro suplício para seus moradores.

Beleza e funcionalidade não são idênticas, e é por essa razão que admiramos construções que há muito perderam qualquer utilidade material (Partenon, Coliseu, Panteão...). Essa é uma evidência de que a beleza é completamente distinta da funcionalidade, e que o inútil é, com frequência, mais belo que o útil. A funcionalidade não é um valor absoluto nem unívoco. Sendo a relação de um objeto com um sujeito, ela varia de acordo com a natureza desse sujeito. Colocando a questão de modo mais claro: uma obra é funcional para quem? Nas sociedades divididas em classes, o que é bom para a classe dominante é mau para as classes dominadas. Um castelo é funcional para um senhor feudal, e uma fábrica, para o capitalista. Percebe-se que aquilo que se denomina funcionalidade é a adequação às necessidades da classe dominante. Um prédio é útil quando atende aos objetivos de seu proprietário _ este é a medida de todas as coisas. Todavia o que é funcional para o proprietário não é funcional para o não-proprietário: a construção reproduz a contradição fundamental da sociedade. O arquiteto trabalha para o proprietário. O não-proprietário, seja ele um escravo, um servo ou um assalariado, não é o ocupante primário dos edifícios, mas um ocupante secundário. Os dois não são equivalentes para o discurso estético: eles habitam o mesmo mundo, porém não ocupam o mesmo espaço social.

A linguagem da arquitetura trabalha com dois usuários não apenas distintos, mas antagônicos. Por isso é preciso definir o lugar de cada um. Toda obra é uma expressão linguística que contém dois espaços opostos, o interno e o externo. O espaço interno é o lugar do proprietário do edifício, que representa o proprietário dos meios de produção. O espaço externo é o lugar do não-proprietário, o local que cabe aos produtores diretos. Parece estranho vincular o lugar ao seu usuário primário, pois é evidente que o proprietário também usa o espaço externo, e o não-proprietário, o interno. Porém não o usam do mesmo modo, pois, como dizia Durkheim (4), o espaço não é neutro nem homogêneo, mas dividido e diferenciado. A distribuição do espaço social varia de acordo com a distribuição da propriedade, e varia não só quantitativamente, mas também qualitativamente. Fora da empresa, o trabalhador é um sujeito autônomo, proprietário de sua força de trabalho e, como tal, livre para viver embaixo da ponte. Para sobreviver, porém, é obrigado a vender sua força de trabalho. Dentro da empresa, ele se converte num assalariado, num instrumento da vontade do empresário: deixa de ser um sujeito para se transformar num objeto, num apêndice vivo do capital. Por isso o espaço interno é o lugar do proprietário, no qual ele comanda os trabalhadores, enquanto o externo é o lugar do não-proprietário, do consumidor. O primeiro corresponde à esfera da produção do capital, onde a desigualdade entre os homens é flagrante e a repressão é empregada em larga escala; o segundo corresponde à esfera da circulação, um paraíso dos direitos naturais, onde todos são livres e iguais, no qual predomina a ideologia. A oposição entre espaço interno e externo, definida pela obra, exprime a relação de um sujeito (a classe dominante) com seu antagonista.

Essa oposição nem sempre existiu: a arquitetura surge com a sociedade de classes. Nas comunidades tribais, o exterior das construções era uma inversão simples do interior. Como todos os indivíduos eram socialmente idênticos, não era necessário contrapor o espaço-para-si ao espaço-para-o-outro. Quando essa identidade primordial se rompe, emerge uma clivagem entre a classe dominante e a dominada, entre o eu e o outro. A arte nasce quando a antiga indiferenciação se dissolve, e cada sujeito coletivo precisa adquirir a consciência de si e do outro: cada classe procura entender sua posição dentro do mundo enquanto tenta convencer a outra a aceitar seu ponto de vista. Toda obra é simultaneamente positiva e negativa: expressa e defende a consciência de sua classe, e combate e desacredita a consciência da classe adversária. Ela encerra dois significados opostos, um destinado à classe dominante e outro à dominada. Como ela cumpre essa dupla função?

Por meio da catarse: a arquitetura não usa um discurso científico, mas trata de evocar sentimentos para transmitir seus significados. Uma fortaleza medieval devia suscitar dois conjuntos de afetos antagônicos, mas correlatos, nas classes em conflito: para o senhor feudal, ela trazia segurança (diante dos servos) e confiança (em si mesmo); no servo, ela infundia medo (diante do senhor) e resignação (diante de sua impotência). Maquiavel compreendia bem essa função ideológica: "O príncipe que tiver mais medo do seu povo do que dos estrangeiros deve construir fortificações, mas aquele que tiver mais temor dos estranhos do que do povo não deve preocupar-se com isso" (5). A arquitetura evoca assim, em cada classe, um afeto em relação a si e um afeto em relação ao outro. Tais complexos afetivos exercem um papel político: expressam a consciência de si (garantindo a unidade da classe) e desagregam a consciência do outro (fomentando sua divisão).

Quanto mais intensos os afetos suscitados pela fortificação, maior sua eficácia. De um castelo imponente, capaz de evocar uma forte sensação de segurança, se diz que é belo: um edifício é considerado bonito quando cumpre bem sua função de manter a classe dominada na linha. Mas a arte não é apenas um despertador de sentimentos. Ela não constitui um discurso ideológico, destinado a legitimar a dominação de uma classe, mas é um espelho da relação do homem com o mundo. A ideologia é um conhecimento falso, um discurso que não apreende a essência da realidade, apenas reflete sua aparência. Já a arte é um conhecimento verdadeiro, um reflexo da estrutura da realidade. Contudo essa oposição não implica a existência de uma separação radical entre elas: conhecimento e ideologia coexistem, em graus variáveis, na consciência de todas as classes. Elas se desenvolvem ao mesmo tempo: a necessidade de compreender o real (e, portanto, de conhecer a verdade) caminha junto com a de dominar o outro (e, portanto, de ocultar a verdade). Por essa razão, toda obra arquitetônica carrega elementos falsos (ideológicos) e verdadeiros (artísticos). Essa unidade, porém, não significa que não possamos distingui-los. Dizer do que é, que é, e do que não é, que não é, é o verdadeiro; dizer do que é, que não é, e do que não é, que é, é o falso, ensinava Aristóteles. Mas como a arquitetura diz a verdade?

A arquitetura é uma síntese do mundo, uma totalidade intensiva que espelha a totalidade extensiva do real. Uma obra é uma miniatura da realidade, na qual a relação entre espaço interno e espaço externo reproduz a estrutura social. Para expor a essência do real, a arquitetura não utiliza palavras, mas signos analógicos: a relação do usuário com a construção é o reflexo da relação do homem com o mundo. Enquanto o discurso científico representa o existente por meio de signos verbais, a arquitetura apresenta ao contemplador uma versão sintética da realidade. Essa síntese é uma particularidade, na qual o concreto expressa o abstrato. A arte procede por indução: o contemplador parte do singular para apreender o universal. O valor da arquitetura não reside apenas na intensidade dos afetos que evoca, mas na verdade que ela encerra: um edifício é belo quando espelha a relação do homem com o mundo. Ora, essa relação nem sempre é positiva e, mais precisamente, não é positiva para todos. Mas existe uma beleza negativa?

Segundo Kant, a beleza deriva tanto da positividade como da negatividade: a primeira é o fundamento do belo; a segunda, do sublime. O ser é belo, o não-ser é sublime. Enquanto o belo é um prazer positivo, o sublime é um prazer negativo, que deriva da contemplação de algo que, em princípio, provoca desprazer: "Rochedos audazes sobressaindo-se por assim dizer ameaçadores, nuvens carregadas acumulando-se no céu, avançando com relâmpagos e estampidos, vulcões em sua inteira força destruidora, furacões com a devastação deixada para trás, o ilimitado oceano revolto, uma alta queda d'água de um rio poderoso tornam a nossa capacidade de resistência de uma pequenez insignificante em comparação com o seu poder. Mas o seu espetáculo só se torna mais atraente quanto mais terrível ele é, contanto que nos encontremos em segurança; e de bom grado denominamos esses objetos sublimes, pois eles elevam a fortaleza da alma acima de seu nível médio e permitem descobrir em nós uma faculdade de resistência de espécie totalmente diversa, a qual nos encoraja a medir-nos com a aparente onipotência da natureza" (6). O sublime nasce da visão de algo negativo para o homem, mas uma negatividade que ele é capaz de enfrentar e superar.

A questão é: a arquitetura pode comportar essa beleza negativa? Para Lukács, isso não é possível: em razão de seu caráter utilitário, a arquitetura só deve despertar emoções positivas (segurança, conforto), pois se ela evocasse sentimentos negativos (medo, desconforto), isso afetaria sua função material (7). Lukács, porém, confunde usuário com contemplador. Eles não são idênticos: o contemplador não utiliza a construção como um valor-de-uso material, mas observa a relação do usuário com ela. Se o edifício provoca desconforto no usuário, isso é ruim para ele, não para o contemplador. Ao contrário, essa negatividade funcional confere à arquitetura a capacidade de espe-lhar a negatividade do mundo. De resto, a disfuncionalidade sempre existiu, mas num sentido único: fortalezas, prisões, senzalas são muito admiradas por serem negativas para as classes dominadas. Porém essa negatividade nunca foi levada em conta, porque a disfuncionalidade para a classe dominada sempre foi considerada positiva. O problema só emerge quando a classe dominante começa a se sentir mal em suas construções.

2. A razão do desconforto

Uma crítica recorrente às obras de Oscar Niemeyer é a de que, a despeito de suas qualidades formais, elas seriam difíceis de habitar: suas construções não primariam pela funcionalidade. As restrições são antigas e, por mais exageradas que possam ser, não deixam de encontrar respaldo na práxis do arquiteto, que subordina a habitabilidade à beleza plástica. Ou, como diz Niemeyer: "Toda forma capaz de criar beleza tem na própria beleza sua principal função" (8). Ao explicar seu trabalho, o artista afirma que sempre procurou criar formas novas para só depois buscar as razões funcionais que as justificassem. Contudo essas razões nem sempre eram justas e, desde os primeiros pro-jetos, muitos problemas têm sido apontados: espaço interno sacrificado, disposição invertida, ventilação inadequada, iluminação insuficiente, acabamento defeituoso (9). De fato, a área interna dos edifícios nunca foi a prioridade do arquiteto, mais preocupado com seu aspecto externo.

Não é paradoxal que uma obra tão bela como o Palácio da Alvorada seja tão difícil para se viver? Mas enquanto o usuário principal (o representante político da classe dominante) sofre, o visitante não é afetado. Ao contrário, a dificuldade do morador constitui um tema para nossa reflexão. Por que o arquiteto foi tão cruel com os presidentes? Não se trata, certamente, de inabilidade técnica (Niemeyer domina amplamente seu ofício), mas de um resultado de seu processo criativo: "Se desenhava uma forma diferente, devia ter argumentos para explicá-la. Quando projetei um bloco em curva, por exemplo, solto no terreno, junto apresentei croquis demonstrando que as curvas de nível existentes o sugeriram; quando desenhei as fachadas inclinadas, da mesma forma as expliquei como destinadas a proteger ou aproveitar a insolação encontrada; quando projetei um auditório, cuja forma poderia lembrar um mata-borrão, foi para o problema da visibilidade interna que apelei; quando criei um sistema de montantes na forma de um 'y', reduzindo-os no térreo e multiplicando-os nos andares superiores, a razão que apresentei foi de economia; quando propus coberturas em curvas, com apoios inclinados nas extremidades, dei como justificativa o problema estrutural do empuxo; quando propus uma solução com curvas e retas, foi para diferenças de pé-direito que recorri... E assim continuei durante muitos anos, procurando a forma diferente e explicando-a depois, como convinha... Confesso que, ao iniciar o meu trabalho em Brasília, já me sentia cansado de tantas explicações. Sabia ter experiência bastante para delas me libertar, desinteressado das críticas inevitáveis que viriam suscitar meus projetos" (10). É fácil perceber que a função está sempre subordinada à forma, e nunca o contrário: o ponto de partida não é a utilidade material do edifício, mas a beleza. Os problemas funcionais são uma consequência natural dessa opção estética. Mas qual é o significado do desconforto do usuário?

Como vimos, a arquitetura espelha a relação do homem com o mundo. Nessa linguagem, o espaço interno é o sujeito da expressão, enquanto a obra constitui o predicado que envolve o sujeito e o separa do espaço externo, o objeto da expressão. A tríade "espaço interno/obra/espaço externo" exprime a relação de um sujeito coletivo (a classe dominante) com o mundo (a realidade) e, em particular, com o objeto (a classe dominada). Se o espaço interno é desconfortável para o usuário, isso se apresenta, para o contemplador, como um símbolo de que a realidade instaurada pelo capital é insuportável. É desnecessário descrever aqui os efeitos devastadores do capital sobre o trabalhador. O que interessa destacar é que o próprio empresário sofre com a alienação. Se o assalariado constitui apenas um objeto, um ser-para-outro, o capitalista não passa de um falso sujeito: ele também não é livre para fazer o que quer, mas é obrigado a fazer aquilo que a concorrência determina. O capital prescreve ao sujeito o modo como ele deve viver e, sobretudo, o modo como ele não deve viver. Cada empresário é levado a moldar sua atividade de acordo com o mercado: não pode agir arbitrariamente, sob pena de perder seu capital. Ele não é autônomo, é apenas a personificação de sua propriedade. Não é um ser-para-si, mas um ser-para-outro _ um instrumento de sua riqueza. O sujeito é um mero objeto, e o objeto é o verdadeiro sujeito. Na arquitetura, essa subordinação do sujeito ao objeto (do homem à propriedade) se manifesta como disfuncionalidade: não é o palácio que precisa se adequar ao usuário, mas este que deve se ajustar a ele. Essa prioridade do objeto sobre o sujeito impregna, aliás, a visão de mundo de Niemeyer: "O universo não foi feito para nós" (11).

A arquitetura é uma arte e não uma técnica. Ela não existe para confortar o homem, mas torná-lo consciente de si e da realidade que o cerca. Precisamente aí reside a verdade das obras de Niemeyer: o capital instaurou uma realidade negativa, transformou o mundo num lugar nefasto. O artista expressa esse fato convertendo o espaço do usuário num lugar desconfortável _ num espaço negativo. Não resta dúvida de que isso é desagradável para o ocupante, mas não para o contemplador, que nele pode ver uma reprodução sintética dos efeitos do capitalismo sobre o ser humano. O desprazer material do usuário evoca um prazer ideal no contemplador, que corresponde ao sentimento do sublime descrito por Kant. A arte reflete a essência da realidade: a negatividade da obra espelha a negatividade do mundo. "Fora o deserto, tudo é arquitetura", dizia William Morris. Niemeyer levou o deserto para dentro da arquitetura. Suas construções lembram a aridez e a desolação da "Fábula de Anfion", de João Cabral de Melo Neto. Numa terra branca e ávida como a cal, causticada pelo sol, Anfion deseja uma cidade estéril como Brasília: "Desejei longamente / liso muro, e branco, / puro sol em si / como qualquer laranja; / leve laje sonhei / largada no espaço" (12). A obra é ruim para morar porque o mundo é ruim para viver: quente, abafado, escuro.

Nisso reside sua verdade arquitetural. Mas o desprazer provocado pelo edifício choca o visitante, que dele esperava exatamente o contrário. O contemplador percebe então que a essência da obra arquitetônica se distingue radicalmente de sua aparência. O prédio não é o que parece: aparenta ser uma fonte de prazer, mas de fato só provoca desconforto. A face externa é positiva, mas a interna é negativa. É belo e, no entanto, é ruim. O contraste entre a aparência e a essência da obra denota a oposição entre a aparência e a essência do capitalismo, uma sociedade cujo marketing é muito superior ao produto vendido. Uma formação social que elogia a liberdade e igualdade, mas que sobrevive à custa da repressão e da desigualdade; que promove a acumulação da riqueza afundando na miséria a maioria da população mundial; e que defende a democracia, na qual os não-proprietários só têm o direito de eleger os proprietários que irão governá-los. Esse é o conteúdo material da obra de Niemeyer. E quanto à forma?

3. Contra o capital

"Se o concreto existe, a curva deve existir também", afirma Niemeyer (13). A utilização da curva, porém, não está isenta de problemas. Analisando a arquitetura racionalista, Niemeyer distingue nela duas grandes técnicas, uma das quais baseada em estruturas metálicas e a outra no concreto armado. "São técnicas com características tão diferentes que normalmente deveriam constituir estilos antagônicos ou, pelo menos, nada parecidos. Uma, a de concreto armado, lembrando ao arquiteto as formas mais inesperadas, a liberdade plástica, a curva livre e criadora que a outra repele, linear e restritiva: uma arquitetura mais simples e fria, longe dos caminhos da imaginação e da fantasia. Infelizmente, essa diferença entre as duas técnicas não foi bem analisada, e os responsáveis pela arquitetura contemporânea passaram a adotar um vocabulário comum, pobre, rígido, incapaz de ex-primir as possibilidades e o espírito do concreto armado". Difunde-se então essa arquitetura "de cubos de vidro, a descer, fria e ostensiva, sobre as calçadas. Era a arquitetura internacional que surgia, tão fácil de elaborar e tão repetida que em poucos anos se disseminou dos Estados Unidos ao Japão" (14).

Mas se disseminou não só por razões técnicas. O problema principal reside nas limitações que o capitalismo impõe à criação arquitetônica: como o preço da terra é elevado (pois o monopólio da propriedade fundiária é uma condição essencial para manter o trabalhador dissociado dos meios de produção), o capital exige o máximo aproveitamento do espaço, o que conduz diretamente ao prédio vertical com a forma de prisma. A redução dos custos de construção exigida pelo mercado impõe o geometrismo e o despojamento formal (15). Ora, apresentar tais imposições materiais do capital como virtudes estéticas implica subordinar a arte ao fetichismo da mercadoria. Tal conversão da lógica da acumulação capitalista em estilo arquitetônico transforma o invólucro mercantil da obra de arte em sua essência. A mercadoria deixa de ser a moldura externa do objeto para se converter no significado da própria obra: um edifício é uma mercadoria material que carrega, como conteúdo estético, uma apologia da mercadoria. A doutrina funcionalista é a expressão da visão de mundo da burguesia na etapa monopolista: "Por trás da radical eliminação de todas as tradições, por trás da convocação a uma arquitetura ‘pura" se encontra o espírito do conformismo... Como a arquitetura desse período estava obrigada a aceitar e afirmar um capitalismo essencialmente desumano, o espírito de desumanidade teria que servir de fundamento de sua concepção espacial" (16). Seu racionalismo é, na verdade, o portador da razão burguesa: a linha reta é boa porque é mais barata, a linha curva é ruim porque é dispendiosa. A sólida implantação do arranha-céu nos países capitalistas demonstra que ele era a melhor expressão estética dos monopólios internacionais, como observa Artigas (17).

No Brasil, porém, a transição tardia para o capitalismo retardou a difusão dessa arquitetura. Por um lado, a ausência de uma sólida base industrial bloqueou o uso de estruturas metálicas, mas não o do concreto, que se adequava a uma técnica construtiva mais primitiva. Mas, e esse é o ponto fundamental, precisamente a ausência desses monopólios no Brasil possibilitou a adoção, por parte do Estado, de um estilo radicalmente diverso do funcionalismo pregado por Mies Van Der Rohe. Niemeyer afirma desconhecer a razão pela qual sua arquitetura esteve sempre na área dos grandes edifícios públicos, mas é fácil apreendê-la. Mesmo no Brasil, o setor privado em expansão também era levado a exigir o máximo aproveitamento do espaço, o que conduz naturalmente ao prisma. O próprio Niemeyer foi obrigado, em mais de uma ocasião, a usar esses cubos quando projetava para empresas privadas. Mas, na esfera pública, dominada por um Estado de compromisso entre uma burguesia agrária (ainda voltada para os estilos históricos) e uma burguesia urbana (que já se inclinava para o funcionalismo), uma terceira via era possível. É esse Estado de transição, que emerge com a Revolução de 1930, que abre caminho para uma obra que não se enquadrava nas preferências de cada uma das frações que integravam o bloco no poder. A arquitetura moderna nasce sob a égide do populismo, na mesma época em que floresciam outros gêneros artísticos voltados para as massas: o romance regionalista, a pintura social, o nacionalismo musical.

Niemeyer não deixa de ter razão quando afirma: "Hoje, revendo meus projetos, compreendo por que, em todas aquelas fases, um sentimento de contestação está invariavelmente contido" (18). Contestação à arquitetura monótona e repetida, regida pela mediocridade imposta pela lógica do capital _ mediocridade já pressentida por Kant: "Todo rigidamente regular (o que se aproxima da regularidade matemática) tem em si o mau gosto de que ele não proporciona nenhum longo entretenimento com a sua contemplação, mas... produz tédio" (19). A incorporação da linha curva ao vocabulário da arquitetura moderna, como fez Niemeyer, constituiu uma negação direta da doutrina funcionalista, pois implicava o sacrifício de muitos espaços valiosos (sacrifício agravado pelo predomínio do eixo horizontal sobre o vertical em muitas de suas obras, que contrastam vivamente com a orientação dos arranha-céus). Por isso ela não se ajustava à lógica mercantil que exigia a construção daqueles caixotes de vidro, mas incorporava as expectativas dos não-proprietários, dos trabalhadores que só tinham acesso ao espaço externo desses edifícios supostamente públicos. Suas obras encerram uma motivação análoga à presente na arte social da era populista: "Não sei por que minha arquitetura esteve sempre na área dos grandes edifícios públicos. E, como eles nem sempre correspondem a razões sociais justas, tento fazê-los belos, espetaculares. Com isso os mais pobres param ao vê-los, com espanto e entusiasmo. É o que, como arquiteto, lhes posso oferecer" (20). Decorre daí o predomínio do espaço exterior sobre o interior, uma constante na carreira de Niemeyer. Há consenso de que o arquiteto sempre subordinou a disposição interna de suas construções à sua configuração externa, sacrificando a funcionalidade em proveito da beleza plástica. Inconscientemente, ele prejudicou os proprietários dos meios de produção e beneficiou os não-proprietários _ uma das razões de sua imensa popularidade. Sua arquitetura mostra, para as classes dominadas, que o mundo se torna mais belo quando deixa de ser regulado pelo capital. Ora, não é esta uma arquitetura social?

A obra de Niemeyer revela uma coerência notável em relação à sua militância política. Tanto seu conteúdo material (a disfuncionalidade) como sua forma material (o espaço curvo) mostram que ele sempre foi um contestador, no plano estético, das imposições técnicas e estilísticas do capital. O predomínio da forma sobre a função, do espaço externo sobre o interno, da linha curva sobre a reta convergem no sentido de pôr em evidência os efeitos nefastos do capitalismo sobre o homem e de combater a subordinação da arquitetura à lógica capitalista. Não resta dúvida de que estamos aqui muito distantes do realismo socialista. Mas quem disse que existe um único caminho para expressar o comunismo na arquitetura? Se isso não ocorre na literatura, por que deveria ser assim nas artes plásticas? O comunismo pode ser dito de muitas maneiras _ e a vida de Niemeyer é uma delas.


Notas:
  1. Trosky, Leon - "Literatura e Revolução", Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1980, pág. 25. (voltar)
  2. Niemeyer, Oscar - "A Arquitetura Moderna no Brasil", in "Arte no Brasil", Editora Nova Cultural, São Paulo, 1986, pág. 24. (voltar)
  3. Niemeyer, Oscar - "As Curvas do Tempo - Memórias", Editora Revan, Rio de Janeiro, 1999, pág. 66. (voltar)
  4. Durkheim, Émile - "As Formas Elementares de Vida Religiosa", Edições Paulinas, São Paulo, 1989, pág. 40. (voltar)
  5. Maquiavel, Nicolau - "O Príncipe", in "Maquiavel", Abril Cultural, São Paulo, 1979, pág. 90. (voltar)
  6. Kant, Immanuel - "Crítica da Faculdade do Juízo", Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1993, pág. 107. (voltar)
  7. Lukács, Georg - "Estética", Ediciones Grijalbo, Barcelona, volume 4, pág. 115. (voltar)
  8. Niemeyer, Oscar - "A Arquitetura Moderna no Brasil", idem, pág. 24. (voltar)
  9. Bruand, Yves - "A Arquitetura Contemporânea no Brasil", Editora Perspectiva, São Paulo, págs. 104-218. (voltar)
  10. Niemeyer, Oscar - "As Curvas do Tempo - Memórias", págs. 268-269. (voltar)
  11. Niemeyer, Oscar - "As Curvas do Tempo - Memórias", pág. 225. (voltar)
  12. Melo Neto, João Cabral de - "Antologia Poética", Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1978, pág. 182. (voltar)
  13. Niemeyer, Oscar - "Diálogo Pré-Socrático", Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, São Paulo, 1998, pág. 18. (voltar)
  14. Niemeyer, Oscar - "A Arquitetura Moderna no Brasil", idem, pág. 22. (voltar)
  15. Coelho Neto, J. Teixeira - "A Construção do Sentido na Arquitetura", Editora Perspectiva, São Paulo, 1984, pág. 108. (voltar)
  16. Lukács, Georg - "Estética", idem, pág. 137. (voltar)
  17. Artigas, João Batista Vilanova - "A Função Social do Arquiteto", Fundação Vilanova Artigas/Editora Nobel, São Paulo, 1989, pág. 64. (voltar)
  18. Niemeyer, Oscar - "As Curvas do Tempo - Memórias", pág. 266. (voltar)
  19. Kant, Immanuel - "Crítica da Faculdade do Juízo", idem, pág. 88. (voltar)
  20. Niemeyer, Oscar - "As Curvas do Tempo - Memórias", pág. 248. (voltar)
 

Artigo publicado na revista Cultura Vozes volume 94, ano 94, número 1 (janeiro/fevereiro de 2000)

 

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