Análise do quadro "Quadrado Preto sobre Fundo Branco"

 

 

 

Mauricio Puls

 

 
Quadro de Kasimir Malevitch

A pintura abstrata é uma arte subjetiva. Ela pressupõe uma cisão entre o significado e o significante, cisão que se fundamenta na dessemelhança entre o significante e a referência do quadro (a realidade). Em um retrato figurativo, a relação entre a imagem visível (o homem singular) e o universal que ela expressa (a humanidade) é mediada pelo particular, pela determinação histórica e social daquele indivíduo representado. Compare-se um quadro figurativo, como o "Louis Bertin", de Ingres, com o "Quadrado Preto sobre Fundo Branco", de Malevitch (imagem ao lado). Pode-se notar como, na pintura de Ingres, cada detalhe da figura (as mãos, o rosto, o porte) ostenta seu significado. Em contraposição, o quadrado preto de Malevitch só expressa os atributos do homem contemporâneo graças à atribuição de significado feita pelo contemplador, com base na semelhança abstrata entre a figura geométrica e o objeto em geral, objeto no qual projetamos nossa própria subjetividade. Portanto, cada uma dessas obras apresenta uma estratificação diversa.

Um quadro figurativo como o "Louis Bertin" está estruturado em três níveis: "indivíduo = burguês = homem", que correspondem ao silogismo "singular = particular = universal". A particularidade (a representação do burguês) realiza a mediação entre o singular (o indivíduo retratado no quadro) e o universal (a humanidade subjacente ao indíviduo). Quando contemplamos o quadro abstrato, porém, nos deparamos com uma estrutura diversa. Num primeiro momento, percebemos que a imagem singular (o quadro) não denota nenhum objeto determinado. Mas, se a imagem não designa nenhum objeto concreto, é porque ela espelha o objeto em geral ou, mais precisamente, a essência comum a todos os objetos: o quadro denota um universal. A imagem abstrata reflete, em razão de sua própria indeterminação material, a essência da realidade: o quadro é um enigma cuja chave é o real. Considerando a imagem como uma expressão na qual a figura é o sujeito e o fundo é o predicado, tudo se esclarece. Cada momento do significante adquire um significado: a figura (o quadrado preto) passa a espelhar o sujeito, e o fundo (branco) passa a espelhar o mundo (que envolve o homem). A tela se torna uma metáfora do real.

A metáfora é a estrutura semântica fundamental da pintura abstrata: é ela que converte esses momentos do significante (quadro, figura e fundo) em alegorias da realidade, do homem e do mundo. Qual é então o significado da obra de Malevitch? Já sabemos que o quadrado preto representa o homem. Logo, o significado da figura será definido pelos significados atribuídos a essa forma (o quadrado) e a esse conteúdo material (o negro). O quadrado é uma figura eminentemente estática: ela denota a permanência, a imobilidade. Por isso constitui a expressão do terrestre em oposição ao celeste (ao divino). Figura convexa, o quadrado carrega certa agressividade em razão de seus ângulos retos, mas é uma violência contida por sua simetria. Seu equilíbrio e sua homogeneidade enquadram seus vetores oblíquos (que tendem a avançar para o exterior) e sua configuração geral apresenta certa tranqüilidade aparente.

Mas a figura não apresenta apenas essa forma material, mas também um conteúdo material: o preto. Ora, o preto denota a escuridão, a negatividade, o não-ser. É a expressão do mal, da tristeza e da infelicidade: ele constitui a forma de manifestação de uma vida interior sombria, perpassada por sentimentos negativos. Representa a velhice, a morte e o fim. Constitui a expressão da violência, da autoridade e da agressividade (do poder, da repressão). O quadrado preto é uma alegoria do homem. O homem contemporâneo é um ente essencialmente negativo: seu conteúdo é o mal, a tristeza, a infelicidade. O emprego do preto revela ainda um distanciamento entre o homem e o mundo _ uma aversão do sujeito pelo objeto. Ele denota a introversão da libido, a dissociação entre o sujeito e o objeto. O quadrado preto é, portanto, uma alegoria do homem dissociado de seu mundo.

Mas esse mundo (o fundo branco) também é um quadrado e, como tal, agressivo e estável, violento e tranqüilo. Seu conteúdo (o branco), porém, é completamente diverso. Há pois um antagonismo inconciliável entre o homem e o mundo, uma disjunção que não permite nenhuma aproximação, nenhuma síntese. Em oposição ao preto, o branco é a expressão da vida, do bem, da felicidade. Como dizia Kafka, existe felicidade no mundo, uma felicidade infinita, mas ela não existe para nós. Não podemos alcançar o bem. O branco do fundo adquire aí um significado negativo. Ele denota a positividade, mas uma positividade indeterminada, vazia, oca. O homem é infeliz, porém denso; o mundo é feliz, mas vazio. Essa felicidade constitui apenas um ideal, uma miragem que esmaga o homem com seu peso. O mundo é árido, seco, frio _ uma terra desolada. A esfera pública (o mundo) é a esfera da luz _ o lugar da claridade, da luminosidade e da transparência. Mas essa claridade, luminosidade e transparência constituem na verdade os fundamentos da repressão ao homem: a luz é a condição para que o outro possa nos vigiar, nos controlar: ela é o pressuposto do olhar do outro. Por isso a escuridão se tornou a esfera da contestação ao poder, o início da revolta contra a alienação. A cisão entre homem e mundo é completa: não há conciliação possível. Por essa razão esse significado exige um significante abstrato.


Nota:
Texto extraído, com algumas modificações, do capítulo 3 do livro "O Significado da Pintura Abstrata".
 

 

 

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