Pintura e industrialização

 


Gênese e ruptura da frente concretista

 

Mauricio Puls

 

 

1. A polêmica

Em 22 de março de 1959, o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil publicou o "Manifesto Neoconcreto", de Ferreira Gullar, cristalizando uma cisão no construtivismo brasileiro que se anunciava desde 1957. Começou então uma polêmica que, passados 40 anos, ainda não terminou. Marcada por ressentimentos de parte a parte, a discussão acabou criando uma grossa camada de mal-entendidos, que hoje dificultam a compreensão dos motivos da cisão. Por isso, vamos tentar inicialmente fixar os pontos centrais da controvérsia.

Gullar abre o manifesto afirmando que o neoconcretismo constitui uma tomada de posição diante da "arte concreta levada a uma perigosa exacerbação racionalista". O alvo da crítica é a teoria de Waldemar Cordeiro. O racionalismo aparece de uma forma ainda pouco clara no "Manifesto Ruptura", de 1953, que pretendia "conferir à arte um lugar definido no quadro do trabalho espiritual contemporâneo, considerando-a um meio de conhecimento deduzível de conceitos". Essa rápida colocação, que enquadrava a arte na esfera do conhecimento objetivo, recebeu uma formulação mais explícita no texto "O Objeto", de Cordeiro, datado de dezembro de 1956. Nesse artigo, Cordeiro argumenta que a arte não expressa o pensamento, seja ele "intelectual, ideológico ou religioso. A arte não é, igualmente, expressão de conteúdos hedonísticos. A arte, enfim, não é expressão, mas produto". Por isso, a "solução está em inserir a expressão na arte e não a arte na expressão". Cordeiro diz que a arte é um produto objetivo, rejeitando assim a formulação de que a arte expressa o sujeito.

Gullar contesta essa tese. Segundo ele, é preciso distinguir as realizações dos grandes construtivistas (Mondrian, Malevitch, Pevsner) de seus princípios teóricos, pois o discurso verbal frequentemente estava em contradição com as obras produzidas. A partir dessa diferença entre teoria e prática artística, Gullar critica a subordinação da arte ao conhecimento científico. Segundo ele, "o racionalismo rouba à arte toda a autonomia e substitui as qualidades intransferíveis da obra de arte por noções de objetividade científica: assim os conceitos de forma, espaço, tempo, estrutura... são confundidos com a aplicação teórica que deles fez a ciência". Partindo desse ponto de vista, os concretos apenas "ilustram noções a priori, limitados por um método que já lhes prescreve, de antemão, o resultado do trabalho". No fundo, diz Gullar, os concretos "vêem o homem como uma máquina entre máquinas e procuram limitar a arte à expressão dessa realidade teórica". Em contraposição ao concretismo, o neoconcretismo não concebe a obra de arte nem como máquina nem como objeto, mas como "um quasi-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos". Isso porque a obra de arte transcende essas relações mecânicas, criando uma significação que expressa o sujeito. A obra de arte não é apenas um produto, mas um produto que expressa o homem. Interessa-nos agora fixar a essência da discussão. Os concretos viam a obra de arte como um ente objetivo (exterior ao sujeito), que possuía uma estrutura racional _daí a defesa de uma arte objetiva. Já os neoconcretos encaram a obra como um ente que expressa o sujeito humano _daí a defesa de uma arte subjetiva.

O segundo núcleo da polêmica girava em torno do "dogmatismo" do grupo paulista (e, mais precisamente, de Waldemar Cordeiro) em oposição à "flexibilidade" dos cariocas. Deve-se notar que as críticas à ortodoxia de Cordeiro não vinham apenas dos neoconcretos. Hermelindo Fiaminghi rompeu com os concretos em junho de 1959, também ressaltando esse aspecto. Antes dele, Anatol Wladislaw, signatário do "Manifesto Ruptura", já tinha se afastado do grupo para praticar um abstracionismo informal. Outros pintores paulistas, como Willys de Castro e Hércules Barsotti, também não conseguiram se ajustar com Cordeiro e migraram para o neoconcretismo. Na avaliação de Haroldo de Campos, a divergência estava situada no terreno das idiossincrasias pessoais. Décio Pignatari, porém, admite que Cordeiro, embora partidário de Antonio Gramsci, era "stalinista na condução interna do grupo". O problema, porém, não era apenas de ordem pessoal. Na realidade, esse dogmatismo resultava da presença de um projeto coletivo para a arte, que inexistia nos artistas do Rio.

Cordeiro, retomando teses defendidas pelos marxistas, defendia uma arte voltada para as massas: "Acreditamos com Gramsci que a cultura só passa a existir historicamente quando cria uma unidade de pensamento entre os simples e os artistas e intelectuais. Com efeito, somente nessa simbiose com os simples a arte se depura dos elementos intelectualísticos e de natureza subjetiva, tornando-se vida", diz Cordeiro. Essa posição, que enfatizava a importância da ornamentação e do design industrial, estava muito distante dos princípios estéticos do PCB, que pregava um realismo social à maneira de Portinari. Na época, Cordeiro era visceralmente contrário àqueles que pretendiam expressar conteúdos "ideológicos" na arte, pois atribuíam "à arte tarefas que esta não pode cumprir, por serem contrárias à sua natureza". Daí sua firme rejeição "ao populismo de Portinari e a todo conteúdo tido como externo à arte" (1).

Os neoconcretistas não defendiam então uma arte voltada para as massas nem compartilhavam dos ideais marxistas de Cordeiro. Não havia, porém, uma divergência partidária entre os dois grupos, pois os neoconcretos tampouco tinham vínculos com a direita. Eram, aliás, mais abertos ao diálogo com os pintores populares (ingênuos). Não é casual, portanto, a adesão de Ferreira Gullar ao Centro de Popular de Cultura da UNE em 1962, na mesma época em que os poetas concretos davam seu "pulo semântico-participante". Ora, no plano pictórico, esse salto participante significava a liquidação do abstracionismo: a partir de 1964, o próprio Cordeiro expõe obras "ideológicas", antes tão criticadas. Podemos, portanto, fixar os núcleos do debate: arte objetiva (obra como produto) versus arte subjetiva (obra como expressão), de um lado, e projeto coletivo (daí o dogmatismo) versus projeto individual (daí a flexibilidade), de outro. A questão reside em verificar se esse debate refletia práticas estéticas diversas.

2. Duas vertentes estéticas

Comparemos inicialmente a obra "Movimento" (veja quadro), de Waldemar Cordeiro, líder do grupo Ruptura, com "Formas" (veja quadro), de Ivan Serpa, líder do grupo Frente. As duas foram apresentadas na Bienal Internacional de São Paulo, em 1951. Os dois quadros possuem uma estrutura geométrica, e nisso reside sua semelhança. Observando essas telas, é fácil compreender as razões que aproximaram os grupos do Rio e de São Paulo. Mas uma análise mais atenta permite notar a presença de diferenças não menos relevantes, e que levariam ao rompimento.

A obra de Cordeiro é formada por vários retângulos, de cores e comprimentos diferentes, dispostos sempre na posição horizontal. O quadro pretende sugerir o movimento pelos contrastes entre as figuras _mais ou menos como as fotografias que registram o movimento dos carros à noite, nas quais as luzes dos veículos formam uma série de linhas coloridas. Contudo, a despeito do título, o quadro sugere pouco movimento. É sabido que as linhas horizontais são as mais estáticas, pois estão associadas à representação do repouso e da morte (2). Por conseguinte, são as menos indicadas para exprimir o movimento. O artista teria sido mais bem sucedido se tivesse usado linhas curvas e diagonais.

Em contraste, a obra de Serpa é formada por três figuras. A primeira é o bloco branco, que se distingue dos demais por combinar linhas retas e curvas. A parte esquerda dessa figura irregular envolve o círculo laranja, que parece deslizar em direção ao pólo direito da figura. Mais distante, encontra-se o círculo negro, que flutua no fundo azul, equilibrando a composição assimétrica. A contraposição entre a figura laranja (regular) e a branca (irregular) confere forte dinamismo ao quadro. A harmonia é bem construída, evidenciando a complementaridade das figuras (branco e negro, laranja e azul). O quadro possui a estrutura de uma "Sagrada Família": uma Madona (a figura branca, pura) envolve e aproxima de si o menino Jesus (o círculo laranja, radiante), observados por São José, mais distante (círculo negro, melancólico). É fácil perceber que a assimetria e a presença de linhas curvas e diagonais garantem movimento à obra.

Por que o quadro de Cordeiro possui menos dinamismo que o de Serpa? O primeiro fator reside nos pressupostos do concretismo, que pregava uma arte plana: se a tela é bidimensional, assim também deve ser a imagem. De acordo com esse postulado, o emprego de linhas curvas e diagonais precisa ser muito bem calculado para não criar a impressão de profundidade. Essa restrição limita o uso dessas linhas, que em geral acabam sendo inscritas em estruturas simétricas e centralizadas, construídas a partir da repetição em série de um mesmo padrão. Simetria, centralização, repetição _tudo converge no sentido de conferir rigidez ao quadro. Note-se que a figura preferida dos concretos é o quadrado, em posição normal ou inclinada, uma figura que se presta pouco à expressão do dinamismo. A inspiração é Mondrian, cujos quadros são constituídos por figuras geométricas semelhantes, mas de tamanhos e cores diferentes. Eles são uma representação da sociedade capitalista, na qual proprietários privados diferentes (capitalistas e trabalhadores) convivem em harmonia. Cada figura possui um lugar e uma dimensão, da mesma forma que cada proprietário possui uma posição e uma importância social. As figuras são diferentes, mas possuem a mesma estrutura fundamental. Elas não possuem movimento nem liberdade, pois estão encerradas numa grade estática. Os concretos, imersos numa sociedade em rápida transformação, tentam dinamizar as estruturas de Mondrian, mas partilham da mesma visão sobre a sociedade capitalista: uma ordem estática, hierarquizada e harmônica. Por isso recuperam as diagonais e curvas, mas só as empregam em contextos que não permitem a criação de volumes.

Em contraste, os cariocas estiveram, desde o início, mais abertos às estruturas assimétricas e descentralizadas. Triângulos e círculos são preferidos em relação aos quadrados e retângulos. Valorizam mais as linhas curvas e diagonais, e trocam a unidade pela multiplicidade. A repetição convive com a irregularidade: o mundo não aparece aí como uma ordem absolutamente racional, mas comporta diversas irracionalidades. A realidade não é unitária e fechada, mas sim plural e aberta. Nesse sentido, o grupo carioca é mais aberto à subjetividade, uma abertura cujo desdobramento será o desenvolvimento das obras que demandam a participação do contemplador _o poema enterrado, os bichos, os penetráveis. Nada mais distante do projeto paulista, que expõe ao observador um objeto fechado. Essa visão de mundo guarda, pois, uma diferença inconciliável com a expressa pelo grupo carioca, que destaca a ação do sujeito. Reside aí o núcleo da divergência estética, que levará à cisão neoconcreta.

3. Duas classes sociais

Coube a Aracy Amaral o mérito de ter demonstrado que essa divergência estética refletia as visões de mundo de dois grupos sociais distintos. Em São Paulo, os construtivistas possuem vínculos com "a indústria, a tecnologia, a aplicação do trabalho do artista na vida prática... Elaborando-se uma relação dos artistas que participaram do movimento em São Paulo, constata-se com facilidade a vinculação de todos (com exceção de Judith Lauand e Charoux) com o meio empresarial paulista: químico industrial, desenhista técnica, publicitário, arquiteto, paisagista, artista gráfico, ilustrador, industrial têxtil, cartazista, fotógrafo, cronista diagramador, vitrinista, desenhista industrial. São as atividades industriais a que se dedicam para ganhar a vida, que continuam exercendo durante os anos efervescentes da polêmica concretista, paralelamente à sua produção artística, bem como posteriormente à vaga concretista".

Já no Rio, observa Amaral, notava-se "uma autonomia individual respeitada, do trabalho isolado, pura investigação desvinculada do utilitarismo que caracteriza as pesquisas do grupo de São Paulo. Os artistas cariocas _ou adidos aos neoconcretos do Rio_ tampouco tinham as vinculações profissionais com a indústria, observadas em São Paulo... Procedem da classe média e média alta e em nenhum momento seu trabalho é absorvido pelas solicitações profissionais do meio"(3). Os artistas do Rio trabalhavam isoladamente, como trabalhadores autônomos, e por isso prezavam a liberdade individual e a flexibilidade, ao passo que os artistas paulistas trabalhavam como assalariados de grandes empresas, e por isso enfatizavam a produção coletiva e a necessidade de ordem e disciplina. O mesmo pode ser observado em relação ao projeto político: a base social do grupo paulista, integrada por assalariados, era muito mais propícia ao estabelecimento de um PC (Partido Concreto) do que a do grupo carioca, integrado por artistas dispersos, que não queriam abrir mão de sua autonomia. Os dois grupos integravam, portanto, classes sociais diversas: os paulistas pertenciam à classe média assalariada, e os do Rio à chamada pequena burguesia.

Cada uma dessas classes possui uma visão de mundo diferente. A pequena burguesia é formada pelos trabalhadores autônomos, que não são empregados assalariados nem utilizam empregados para produzir algum bem. Esse é o caso dos profissionais liberais (advogados, médicos, dentistas) que possuem escritórios próprios e dos demais trabalhadores por conta própria. Eles trabalham isoladamente, tentando preservar sua autonomia e sua liberdade individual. Já a classe média é formada pelos trabalhadores que ocupam uma posição intermediária no interior da relação capitalista, ou seja, por aqueles funcionários encarregados das tarefas de direção, persuasão e repressão dos demais empregados: eles exercem a função de intelectuais, no sentido gramsciano. Distinguem-se do capitalista por serem assalariados e dos demais empregados por representarem o capitalista. Enquanto a pequena burguesia se situa fora da relação capital-trabalho, a classe média encontra-se no centro dessa contradição.

Decorre daí uma diferença estrutural entre suas visões de mundo. No interior do sistema capitalista, a classe média é uma camada em expansão, enquanto a pequena burguesia é uma camada em retração. Operando com uma produtividade menor do que a da indústria, os autônomos vão sendo empurrados para as esferas produtivas que o capital ainda não ocupou, sobrevivendo nos interstícios do capital, mas com uma dimensão social cada vez menor. Sofrem, portanto, um processo contínuo de alienação de seus meios de produção, um processo de expropriação que eles não conseguem compreender: por isso eles constituem uma classe sem futuro, o que explica sua consciência trágica. De seu ponto de vista, a realidade é irracional, pois não há explicação racional para seu desaparecimento. A posição da classe média é radicalmente diversa. Ela possui uma racionalidade interna ao capital e por isso tende a crescer sob o capitalismo. Assim, as perspectivas da classe média, enquanto classe, são positivas. A remuneração de seus integrantes é mais elevada do que os rendimentos de outras classes dominadas. Para eles, a realidade é racional. A classe média, entretanto, também sofre com a alienação. Ela não possui os meios de produção nem se apropria do produto. Ela não controla o processo de trabalho, apenas executa a vontade do capitalista. Sua práxis é dirigida por uma finalidade que lhe é exterior: a finalidade do capital. Seu trabalho é uma atividade vazia: ele possui uma forma racional, mas não um conteúdo racional. Sua práxis não tem um significado para si, mas um significado externo. Nisso reside sua alienação: executa um trabalho desprovido de significado para si mesma.

A linguagem artística espelha essa diversidade. A pequena burguesia busca o abstracionismo porque seu mundo se encontra em desagregação. Ela rejeita o aqui e o agora, preferindo retratar aquilo que está distante no tempo ou no espaço. Em lugar de representar o presente, tende a se fixar nas imagens da memória (Volpi), tentando reter no quadro o mundo que está sendo destruído. Daí sua preferência por uma pintura semi-abstrata. Outros, porém, rompem completamente com a representação do real, chegando à abstração total. Essa ruptura entre a pintura e a realidade reproduz, no plano ideal, a dissociação entre o produtor e seus meios de produção, no plano real. O abstracionismo da pequena burguesia expressa a consciência possível de uma classe condenada à morte. O que caracteriza essa abstração é o emprego de figuras irregulares, que expressam a irracionalidade do real. Os estilos variam desde o abstracionismo lírico (e melancólico) até o expressionismo abstrato (e trágico) de Pollock.

A arte da classe média tem uma motivação diversa. Sua alienação não decorre de um processo de expropriação, no qual uma existência até então plena de significado se dissolve sem explicação, mas de uma existência que em si já não possui significado. O assalariado não é um sujeito, um ser-para-si, mas um objeto, um ser-para-outro. O empregado não produz para si, mas para o capitalista. Ele não controla o processo de trabalho nem seu produto. Não tem interesse nas coisas produzidas porque elas não têm importância para ele. Como o objeto não tem valor-de-uso para o sujeito, ele acaba desaparecendo de seu horizonte linguístico. A linguagem pictórica registra essa desvalorização radical do produtor e do produto: figura e fundo se tornam abstratos. Um objeto some da esfera da linguagem quando perde seu significado, e ele perde seu significado quando deixa de ser útil para o sujeito. Ao ser expropriado dos meios de produção, o produtor também foi despojado dos signos que os denotavam: as imagens se foram com as coisas. Daí a elipse do tema do quadro: a imagem pictórica deixa de representar qualquer ente determinado porque eles perderam sua importância para o pintor. Para a classe média, a realidade é racional, mas de uma racionalidade vazia. O empregado trata apenas de efetuar transformações na matéria para imprimir no objeto a finalidade do capital. Sua razão não se volta para os fins, mas para os meios: ela é uma racionalidade formal. Por isso os artistas da classe média priorizam o significante em detrimento do significado. Daí o emprego de figuras regulares, geométricas. O construtivismo é a expressão estética da classe média submetida à alienação.

Podemos distinguir assim duas grandes vertentes na pintura abstrata. De um lado, ela expressa o processo de dissolução da pequena burguesia, cuja práxis era dotada de significado; de outro, ela expressa o processo de expansão da classe média, cuja práxis é desprovida de significado. Para a pequena burguesia, a realidade teve um sentido, mas agora não tem mais: ela é caótica e irracional. Daí o emprego de figuras irregulares. Já para a classe média, a realidade é racional, mas sua racionalidade é apenas formal. A obra possui uma organização regular, harmônica e equilibrada, mas denota apenas o vazio. A classe média se identifica com o construtivismo, enquanto a pequena burguesia tende para o informalismo. Constatadas essas diferenças estruturais, a polêmica entre concretos e neoconcretos surge sob uma nova luz: o problema não consiste em explicar a divisão do construtivismo brasileiro, mas sim em explicar os fatores que aproximaram duas classes tão diferentes por um breve momento.

4. Razões da cisão

O construtivismo é a expressão estética da industrialização do Brasil. Os primórdios do abstracionismo geométrico podem ser localizados em 1922. Na época, São Paulo já havia superado o Rio como principal pólo industrial do país. Vicente do Rêgo Monteiro pintou uma "Composição Abstrata" em 1922. Tarsila do Amaral usou um fundo geométrico em "A Negra", de 1923. Lasar Segall faz decorações abstratas para o Pavilhão Moderno de Olívia Guedes Penteado. Antonio Gomide, Regina Gomide e John Graz realizam muitos vitrais abstratos em São Paulo (4). O impulso abstrato, porém, declina após 1930.

A Revolução provocou o fim do domínio político das oligarquias agrárias, que se apoiavam sobre relações de produção na qual o trabalho assalariado se encontrava conjugado a formas de arrendamento não-capitalistas. Como não havia um mercado nacional de força de trabalho, o patrão precisava fixar os trabalhadores na fazenda. Por isso, o capital se encontrava imobilizado, adquirindo uma expressão política regional: o coronelismo, no plano local, e a política dos governadores, no plano federal. A Revolução derruba essa estrutura oligárquica, instaurando um Estado que refletia o avanço das relações capitalistas no país, em especial nas cidades. A estratégia desse Estado era o populismo.

Como explica Gorender, o "populismo inaugurado por Getúlio Vargas se definiu pela associação íntima entre trabalhismo e projeto de industrialização. O trabalhismo como promessa de proteção dos trabalhadores por um Estado paternalista no terreno litigioso entre patrões e empregados. O projeto de industrialização como interesse comum entre burgueses e operários. O populismo foi a forma da hegemonia ideológica por meio da qual a burguesia tentou, e obteve em elevado grau, o consenso da classe operária para a construção da nação burguesa" (5). No plano cultural, o populismo estimulou as formas de arte que buscavam espelhar a vida do trabalhador: o romance regionalista, o realismo social na pintura, o nacionalismo musical. Paradoxalmente, embora o Estado populista fosse um Estado industrializador, a hegemonia do populismo deteve a evolução do modernismo rumo à pintura abstrata (veja-se o caso de Tarsila, que inicia sua fase social). O grupo modernista era formado por integrantes das oligarquias agrárias, que viajavam constantemente para a Europa, de onde traziam novas idéias no campo da arte. Com a Revolução, o grupo se desagregou.

O populismo viabilizou a industrialização, mas esta minou as bases do populismo. O setor industrial, já fortalecido, não precisava mais de anteparos para defender sua hegemonia diante dos proprietários fundiários. Os trabalhadores, por sua vez, formulavam reivindicações econômicas e políticas que o Estado já não podia contemplar. Assim, na segunda metade dos anos 40, os estilos que floresceram sob o Estado populista começam a ser duramente questionados. A burguesia industrial toma a iniciativa na esfera cultural: Assis Chateaubriand cria o Masp em 1947, Francisco Matarazzo funda o MAM paulista em 1948. O Estado populista, ao promover a industrialização, criou os pressupostos sociais para a emergência da arte abstrata: fortaleceu a burguesia industrial e criou uma vasta classe média, o público preferencial da nova arte.

É no início dos anos 40 que a grande maioria dos concretistas e neoconcretistas, nascidos nas décadas de 10 e 20, começa a pintar. São eles que, distantes das lutas que os modernistas travaram com os acadêmicos (1917, 1922, 1931), empreendem a passagem para o abstracionismo. Não tinham a mesma origem social: enquanto os modernistas pertenciam às oligarquias agrárias, os construtivistas integravam a nova classe média criada pela industrialização. A indústria não só criou um novo mundo, como também produziu os sujeitos históricos que iriam representá-lo pictoricamente. Como nota Belluzzo, os concretos "identificaram-se com o desenvolvimento industrial urbano", o que se reflete em seus processos de trabalho, com a valorização "produção pela máquina", a preferência por "tintas de cores já prontas", suportes industriais "como o duratex, compensado, plexiglass" e processos como a "pintura a revólver" (6).

Ao mesmo tempo que cria uma nova civilização, a indústria destrói o velho mundo. Isso leva muitos artistas, ligados afetivamente à realidade em dissolução, para uma pintura mais abstrata: é o caso dos pintores vinculados à pequena burguesia, que perde espaço social à medida que a indústria avança. Existem, pois, duas vias para a abstração: de um lado, uma abstração positiva, que expressa a expansão de uma classe social; de outro, uma abstração negativa, que expressa a retração de uma classe social. Mas, nesse cruzamento de duas vias, artistas de classes diferentes podem se encontrar. De 1930 a 1955, a economia cresceu a taxas recordes. Ao se iniciar o governo JK, muitos tinham a ilusão de que um novo mundo estava sendo criado. De 1940 a 1960, os trabalhadores autônomos urbanos passaram de 1,2 milhão de pessoas para 2,3 milhões, embora sua participação na PEA urbana tenha diminuído de 23,7% para 22,0%. As perspectivas abertas pela industrialização pareciam positivas para todas as classes. Nos anos 50, muitos pintores semi-abstratos aderem ao construtivismo, um sinal da atração que o projeto desenvolvimentista da burguesia industrial exercia sobre a pequena burguesia. A análise de Sérgio Milliet sobre Samson Flexor é instrutiva: "Afirma Flexor que sua orientação decisiva no sentido da abstração decorre não somente de um processo intelectual mas também da contemplação cotidiana do espetáculo que oferece o desenvolvimento frenético de São Paulo, 'onde tudo tende para o futuro e clama seu desprezo pelo passado colonial'. Haveria assim, em seu sentir, uma ligação íntima entre as forças progressistas da civilização e as realizações dos pintores" (7).

Essa identidade aparente entre pintores de origens sociais diversas ocultou, por certo tempo, as profundas diferenças que os separavam. Os concretos paulistas ficavam surpresos com a resistência inflexível de Volpi em abandonar seus métodos artesanais de trabalho e tampouco compreendiam as razões que levavam os cariocas a admitir a presença de primitivos no grupo Frente. Hoje parece evidente que essa frente única pictórica não poderia durar muito tempo: os traços informais nunca sumiram completamente das obras do grupo carioca. Mas as diferenças só se tornaram claras à medida que o ciclo de crescimento econômico começou a dar sinais de esgotamento: a inflação aumenta rapidamente, assim como a dívida externa e o déficit na balança comercial. O ano de 1959 marca uma espécie de fim de linha para a ideologia desenvolvimentista. A visão idílica da industrialização começa a ser posta em questão pelo acirramento dos conflitos urbanos (greves operárias) e rurais (ligas camponesas). A irracionalidade do sistema torna-se mais evidente. É precisamente nesse momento que o abstracionismo informal irrompe com força. Manabu Mabe é premiado pela Bienal de 1959, enquanto muitos artistas abandonam o construtivismo (Flexor), enquanto outros regressam à figuração (Volpi). A cisão neoconcreta evidencia o abandono do projeto racionalista por parte dos artistas cariocas, no momento em que sua classe começa a questionar o projeto desenvolvimentista.

Podemos agora compreender as causas da divisão, que permaneceram obscuras para os envolvidos na polêmica. A discussão se alimenta da diferença entre dois grupos sociais, que possuíam modos de vida opostos, o que transparece em todos os pontos em debate: dogmatismo versus liberdade, produção coletiva versus criação individual. Cada um dessas temas opunha classes diversas, que compartilharam, de 1956 a 1957, as esperanças criadas pela expansão industrial do país, mas que se separaram tão logo o projeto desenvolvimentista começou a claudicar. O construtivismo foi portanto a expressão pictórica da industrialização, num momento em que essa era a promessa de felicidade para todas as classes. Quando a ilusão se desfez, a frente única se rompeu, e cada lado passou a atribuir aos antigos aliados a "culpa" pela cisão, sem reconhecer que o outro não poderia agir de modo diverso. Como ensinava La Rochefoucauld, "as querelas não durariam tanto se o erro estivesse somente de um lado".


Notas:
  1. Belluzzo, Ana Maria - "Ruptura e Arte Concreta", in Amaral, Aracy (org.), "Arte Construtiva no Brasil - Coleção Adolpho Leirner", Lloyds Bank, São Paulo, 1998, pág. 99. (volta)
  2. Ostrower, Fayga - "Universos da Arte", Editora Campus, Rio de Janeiro, 1984, pág. 46. (volta)
  3. Amaral, Aracy - "Arte e Meio Artístico: entre a feijoada e o x-burguer", Livraria Nobel, São Paulo, 1982, págs. 78-79. (volta)
  4. Amaral, Aracy - "Surgimento da Abstração Geométrica no Brasil", in Amaral, Aracy (org.), "Arte Construtiva no Brasil - Coleção Adolpho Leirner", Lloyds Bank, São Paulo, 1998, págs. 31-48. (volta)
  5. Gorender, Jacob - "Combate nas Trevas", Editora Ática, São Paulo, 1987, pág. 16. (volta)
  6. Belluzzo, Ana Maria - idem, pág. 138.(volta)
  7. Milliet, Maria Alice - "Atelier Abstração", in Amaral, Aracy (org.), "Arte Construtiva no Brasil - Coleção Adolpho Leirner", Lloyds Bank, 1998, pág. 72. (volta)
 

Artigo publicado na revista Cultura Vozes volume 93, ano 93, número 4 (julho/agosto de 1999)

 

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